2005/11/27

Confesso, confesso que por aqui fiquei. Que entre laivos de raiva, aqui me aguentei. Que queria mas não podia. Que mísero dia! Já não acalentava muitas esperanças de poder estar presente, mas quando soube que os DV1982, para comemorar os vinte e três anos de vida, iam fazer um tifo com fumarada, os meus olhos até brilharam. Logo me passaram pela memória, as tardes e noites em que se cumpria o ritual de pôr o caxe à volta da cara por causa dos fumos, que eram usados sem qualquer repressão. Mas lá acordei com a sensação que entre duas paredes num lugar estreito, é como querer nadar sem ter o braço direito. E com a quase-certeza que estou destinado a falhar estes momentos que me remetem para o antigamente. Aqueles que me fazem sentir que isto ainda vale a pena. E em que mostramos a quem nos impõe barreiras à nossa liberdade que pior do que não fazer sentido, é a repressão a que estamos sujeitos. Não dá mesmo para perceber, uma vez que se uma fumarada é autorizada é porque não há perigo em se utilizar potes de fumo. Não tenho, nem faço tenções de ter a malfadada sporttv em casa - que tanto contribui para o futebol moderno - mas não resisti em ligá-la mesmo antes do jogo iniciar, com esperança que passassem as imagens da fumarada, se bem que a preto e branco e contorcidas pela codificação. Acertei em cheio, mostraram-nas. E eu tive de cerrar os punhos e morder os lábios...

2005/11/13

Ir à bola sem seres identificado porque lutas pelo teu ideal, sem seres impedido de levar a tua bandeira e mostrar o teu estandarte, sem seres proibído de expores a tua faixa, sem seres importunado com os apelos publicitários que ecoam pelo estádio, sem teres de ocupar uma cadeira que é um pixel do desenho da publicidade na bancada, sem te tirarem o cache que apela à rivalidade - o sal do futebol -, sem te impedirem de mostrar a faixa politicamente incorrecta, sem te obrigarem a gastar rios de dinheiro num estádio vazio só porque queres ver o clube que amas, sem seres torturado pelos senhores do bastão, sem seres controlado por escoltas policiais, sem teres a liberdade de escolheres ir pelo teu caminho e não pelo que te impõem, sem seres catalogado por seres de um grupo, sem seres humilhado por defenderes o que acreditas, sem teres de esconder a tua condição no trabalho, sem seres subjugado com regras impostas por quem não passa sacrifícios, por não quereres ser um peão nas suas mãos, por defenderes as tuas ideias e acreditares no teu ideal, por quereres gritar mais alto em pé no teu lugar, por te mostrares mais disponível do que seria de esperar, por seres um fiél seguidor das tuas cores, por lutares contra os horários dos jogos a bem do futebol, por teres saudades de antigamente, por seres rebaixado em condições desiguais à conta de um estatuto que te impuseram, por defenderes o teu símbolo quando ele mais precisa, por teres nele um orgulho exacerbado, por apenas seres diferente do normal.

2005/11/07

O dia em que o futebol se perdeu

Estavamos na época 92/93. O, na altura, ainda derby da capital ia ser jogado num domingo de temperatura amena, à noite, em pleno estádio da Luz com transmissão televisiva. Para ajudar a relembrar, foi no ano em que Futre vestiu a camisola do Benfica. Nessa noite, fui para o mítico 3º anel com um amigo de infância, responsável por me ter levado para os DV1982. Neste momento, não me recordo muito bem desse campeonato a não ser de três pequenos apontamentos: do jogo de apresentação do Futre, que calhou ter sido contra os tripeiros para a Taça de Portugal, num dia de semana à tarde que, mesmo assim, não impediu de estarem 80 mil pessoas presentes!; da final do Jamor contra o Boavista em que ganhámos por 5-2 com um dos melhores jogos de futebol a que assisti do meu Benfica e com uma curva verdadeiramente infernal dos grupos benfiquistas; e dum episódio que vou contar nas próximas linhas.

Quando estava a começar este texto, tive o cuidado de escrever o 'ainda derby da capital'. Fi-lo propositadamente com o intuito de realçar a circunstância que aqui se conta de seguida, como ponto de viragem do futebol como eu o via e como hoje o vejo. Se fosse hoje, penso que mais facilmente escreveria o 'derby capital', tal a subjugação às leis mercantis e industriais de um futebol que, de comum com o de há uns anos atrás, só tem mesmo uma bola e onze contra onze de cada lado. Mas vamos então à história. Entrei pela saudosa rampa 3 com esse meu amigo. Logo à entrada, deparámo-nos com um grupo de polícias encarregues de fazer a revista aos adeptos. Recordo que este procedimento era muito recente na altura, mas neste jogo atingiu níveis que até então jamais tinha visto. Fomos literalmente revistados de alto a baixo. Desde os pés à cabeça. Tirámos os blusões e os cachecóis do corpo. E lá passámos sem, naturalmente, acusar nenhum objecto contundente. Digo naturalmente porque, nessa altura, nem tochas nem potes de fumo eram proibídos de entrar nos estádios: essa restrição veio depois de 94. Não é que nós tivessemos esse material. Mas porque se tivessemos, mesmo que a revista descobrisse, teriam passado à mesma. Aliás, nem era preciso escondê-los, por isso ainda hoje tenho alguma dificuldade em perceber o porquê da revista tão minuciosa, tendo em conta que hoje elas são principalmente feitas para impedir que esse tipo de material entre no estádio. Até as bandeiras de suporte em ferro e madeira podiam entrar.

Para mim, este foi o momento de viragem para um futebol moderno com que todos nós, directa ou indirectamente, bem ou mal, acabamos por pactuar. Foi também o ter sentido na pele, embora não se tenha passado comigo, a prepotência e abuso de autoridade da polícia num estádio de futebol. O meu amigo, ficou um bocado chateado com todo o aparato da revista a que foi sujeito e, quando passámos o portão de entrada, comentou para mim em tom de desabafo: ''só lhes faltou revistarem-me os tomates'. Repito, já tinhamos passado o portão de acesso às escadas que nos levariam ao 3º anel. O seu azar acabou por ser o divertimento do polícia que, mesmo a uns bons metros de nós, ouviu o comentário. Não sei se estão a imaginar o que aconteceu a seguir. Esse polícia acercou-se do meu amigo e num gesto autoritário agarrou-o pelos ditos cujos. Fiquei atónito, não só pelo acto bestialmente anormal - por vir de quem vinha - mas pela sensação que um gajo que os tem sente ao ver uma cena destas. A partir desse dia, interiorizei mesmo que eles podiam fazer o que quisessem. Percebi, também, e se calhar mais importante, que a nossa liberdade enquanto adeptos - para não falar de cidadãos - estava condicionada. Um mero comentário em forma de desabafo levou a uma atitude injustificada de quem mais parecia que tinha sido agredido.

Palavra de honra que este jogo foi um ponto de viragem. Foi aquele que, para quem vai à bola frequentemente desde os meus 8 anos, marcou a passagem para um futebol cada vez mais elitista. Tudo o que dantes víamos como ícones do futebol, deixaram de existir ao nosso lado na bancada. Sejam bandeiras que o povo orgulhosamente ostentava na entrada dos jogadores em campo e nos golos marcados. Sejam potes e tochas que os mais novos e intervencionistas abriam no início do jogo - que levavam a um ritual quase obrigatório de tapar a cara com o cachecol por causa dos fumos. Sejam os jogos à tarde, em que sentíamos o calor ou o frio do betão das bancadas. Sejam as sandes e sumos que levávamos para dentro do estádio para que não gastássemos o resto dos tostões da semanada nos bares escondidos por baixo das bancadas e vendedores ambulantes. Sejam as faixas que identificavam os adeptos mais rebeldes penduradas nas redes de separação do relvado a tapar a publicidade. Sejam os ricos lado a lado com os pobres, juntos pelo mesmo ideal de nome Sport Lisboa e Benfica.

Actualmente, apesar de nem tudo ser mau e de haver outras condições, perdeu-se toda ou quase toda a magia do futebol enquanto jogo e ópio do povo. Uns tiveram o privilégio de passar por esses momentos. Outros não sabem o que perderam. Faço parte dos primeiros, por ter ainda apanhado o futebol da bola. Mas assola-me constantemente essa nostalgia. Nostalgia da carolice que nos movia pelo Benfica, das quartas-feiras europeias, das cento e vinte mil pessoas, dos 15 minutos à Benfica, do Inferno da Luz, das invasões de campo quando eramos campeões... Hoje posso comparar duas realidades distintas e sinto, claramente, que gostava muito mais desses tempos tão diferentes. Infelizmente não conseguimos defender esses valores e interesses de modo a que os de hoje, tantas vezes antagónicos, não se superiorizassem. Um 'apenas' que é quase tudo!