2006/06/27

Um dia no Mundial 2006
Check-in às 6h da manhã no aeroporto da Portela
Confesso que não sou grande apreciador dos jogos de selecções nacionais e, por isso mesmo, não ligo nem metade aos jogos de Portugal como ligo aos do Benfica. Não tem a ver com patriotismo, ou a falta dele, mas sim com as características básicas dum jogo que envolve irracionalidade, paixão e rivalidade. E estas três características não se encontram tão obviamente quando falamos de selecções nacionais. Não escolhi ser do Benfica, sou porque sim, porque quando dei por mim a gostar de bola já gostava do Benfica. Mas sou de Portugal porque sou português e não faria sentido se fosse adepto de outro país qualquer. Sem comparação, defendo o meu clube com mais garra e pendor do que a selecção, pois a identificação que tenho com o SLB é incomparavelmente maior: temos um estádio que é a nossa casa onde guardamos um lugar que é nosso por uma época inteira, por exemplo. Vibro com o Benfica porque ser do Benfica significa que há do outro lado da barricada adeptos que são do fêcêpê ou do sportém e a rivalidade entre nós não se compara, nem de perto, à que existe entre portugueses e holandeses por exemplo.
O ambiente que se vive no aeroporto não é muito diferente de quando fui ver o Benfica jogar no estrangeiro. Muita gente concentrada nos locais combinados, de acordo com as agências de viagem e os vôos em que iam para Gelsenkirchen, equipadas com as côres vermelha e verde da selecção nacional. Já se fala em chegarmos às meias finais do mundial, ou não fossemos portugueses, e ainda nem cheirámos o solo alemão. Fico a saber que vão, no próprio dia do jogo, cinco charters cheios de adeptos portugueses para verem o jogo em Gelsenkirchen.
Descolagem às 7h30
Nota-se que os adeptos da selecção nacional são mais adeptos de circunstância do que propriamente adeptos de causa. Aparecem de tempos a tempos, normalmente de dois em dois anos quando Portugal entra nas competições da uefa e da fifa. Mas, no fundo, não se pode esquecer que é de dois em dois anos que a selecção joga a doer e a verdade é que, desde o Europeu de Inglaterra em 1996, temos vindo a participar ininterruptamente nas grandes competições entre países, excepto no Mundial 1998 em França. Não fui a nenhum jogo do Euro 2004, vi os jogos todos do lado de fora e achei o ambiente que o envolveu fantástico. Passados dois anos, tive a oportunidade de presenciar ao vivo um jogo de Portugal no estrangeiro contra o México que, sem saber como nem porquê, está no quarto lugar do ranking de selecções da fifa.
No avião, praticamente cheio, vão cerca de 300 pessoas. Foi, de longe, a melhor viagem que já fiz no melhor avião charter em que viajei. Discutem-se as escolhas de Scolari, os não-golos de Pauleta, as birras de Cristiano Ronaldo e a falta que poderá fazer Rui Costa caso Deco se lesione. É inevitável, há mesmo um treinador em cada um de nós.
Aterragem em Munster às 12h30, horas locais
Portugal tem hoje uma equipa cansada e mais velha. As competições europeias de clubes desgastam imenso os jogadores e o futebol moderno encarrega-se do resto. Há quem defenda as vantagens de ter uma equipa mais madura, mas começa-se a constatar que é preciso fazer uma renovação e entrar com jogadores mais jovens nas próximas competições. A geração de Figo, Rui Costa e Baía começou com 20 anos na equipa principal e hoje não temos tantos jogadores com essa idade nos seleccionáveis. Mas eu ficaria bem mais preocupado se isto fosse um problema do Benfica.
O avião aterra, descansado, na pista do aeroporto de Munster e poucos minutos depois entramos directamente nas camionetas que nos levam até Gelsenkirchen. Na pista, vêem-se os aviões dos três vôos charters anteriores e deu tempo suficiente para ver, ainda, a aterragem do vôo charter que veio a seguir ao nosso. A viagem demora cerca de 45 minutos e penso que, tanto numa final da Liga dos Campeões (como sucedeu com os tripeiros) ou num jogo de um Mundial (como sucedeu com os adeptos portugueses contra o México e vai acontecer, novamente, contra a Inglaterra), é um pouco penoso obrigar os adeptos a viajarem mais tempo do que seria necessário caso a cidade escolhida tivesse um aeroporto, o que não acontece com Gelsenkirchen.
Chegada ao Veltins Arena
Do local onde as camionetas estacionam, um enorme descampado que me fez lembrar o parque onde estacionámos em San Siro quando o Benfica jogou contra o Inter para a taça uefa, não se vislumbra o estádio do Shalke 04. Há muitas árvores e muito verde à volta, uma constante na Renânia, um dos 16 estados da Alemanha que é, também, uma zona muito plana ou não fizesse fronteira com a Holanda. À medida que nos encaminhamos para os acessos, o antigo Arena AufSchalke começa a surgir. A primeira impressão é muito má, por fora não se parece nada com um recinto de futebol. Está construído num pequeno monte que foi propositadamente levantado para enterrar o estádio. À primeira vista julgamos ser um centro comercial, praticamente todo espelhado e só as escadarias que existem à volta do recinto para dar acesso ao segundo anel é que dissipam todas as dúvidas. Cá fora, o ambiente era quase todo mexicano. Vêem-se poucos portugueses e, para minha estupefacção, emigrantes eram aves raríssimas por aquelas bandas. Estava convencido, quando se soube que o mundial ia ser na Alemanha, que Portugal ia ser fortemente apoiado pela comunidade emigrante. Nada mais errado, a selecção nacional tem sido apoiada principalmente por portugueses de Portugal. Explicaram-me, depois, que houve desde o início muita dificuldade em adquirir bilhetes e que a federação portuguesa de futebol não tem ajudado em nada os adeptos, sejam ou não emigrantes.
Entro nas bancadas para o segundo anel, através duma das tais escadarias exteriores e reparo que a cobertura do estádio está totalmente fechada. Ao centro da cobertura, o cubo electrónico, que faz o estádio parecer-se bastante com um pavilhão da nba. As bancadas ainda estão despidas e aproveito para colocar o pano que trouxe de Lisboa com a bandeira portuguesa e com uma inevitável referência ao Benfica: 1904. É mais forte do que eu! Às tantas um mexicano com a camisola antiga da ASRoma aproxima-se de mim e começa uma conversa curiosa: fala-se da Roma, do Benfica e do mundial. Fico a saber que é italiano mas com ascendência mexicana e apoia o México por honra aos seus familiares que emigraram para Itália. O meu pano fica rodeado de uma bandeira azteca e por outra alemã. Vêem-se bandeiras de todos os países pelo estádio, as inglesas são as minhas preferidas, mas há uma faixa que salta à vista de todas: East Side, um grupo ultra do Dinamo Dresden, um dos clubes mais fortes da antiga Alemanha Imperial. E lembro-me de ter visto um grupo de elementos fora do estádio com t-shirts alusivas a este grupo.
Início do jogo, 17h locais
O estádio já está totalmente cheio... de mexicanos. O que vi fora do recinto, confirma-se no interior e os mexicanos tomam conta do ambiente. Em todo o estádio há sombreros que limitam um pouco a visibilidade de quem tem o azar de ficar atrás e num dos cantos do estádio, concentram-se a maioria dos portugueses que não se cansam de apoiar a selecção. A Portuguesa ecoa pelo estádio, o primeiro momento alto da tarde é proporcionado pelo hino português, respeitado por todo o estádio enquanto nós enchemos a alma. De facto, o nosso hino é incomparavelmente mais bonito do que os outros todos juntos. Começa o jogo e os adeptos mexicanos não param de dizer olé. Não faz sentido, o jogo ainda agora tinha começado. Tomo consciência que o tipo de apoio dado pelos adeptos do México é um bocado fantochada. Sentam-se nas bancadas a comer, levantam-se para fazer a onda e exultam num ou noutro momento. É uma mistura suave sul americana com states. Só no segundo golo português, reparei num lençol que era da Brigada Lusitânia, se não me falha a vista. Não vi nada dos Ultras Portugal, apenas cachecóis e à minha frente, umas filas abaixo, reparei num pequeno grupo de antigos membros da Juve Leo. No final do jogo, troco um cachecol com um mexicano e pergunto-lhe como é que é possível eles pensarem que podiam ficar em primeiro lugar no grupo com uma equipa daquelas.
De volta a Lisboa
Antes do regresso, deixaram-nos no centro da cidade de Gelsenkirchen onde durante algumas horas deu para sentir o pulso ao ambiente que se vive neste mundial. E, mais uma vez, constato que nada tem a ver com o que presenciei durante o Euro 2004 em Lisboa. Menos festa, menos convívio e dou por mim a pensar que teria gostado sobremaneira se fosse um Portugal - Croácia só para ver os adeptos mais fanáticos da Europa. O mais chato neste tipo de vôos charters é que a viagem de ida e volta têm de ser feitas no mesmo dia, sendo raras as vezes em que não há atrasos na hora do regresso. Mas não foi por acaso que achei este o melhor vôo charter que fiz: apesar de termos sido o último avião a sair do aeroporto, o atraso foi apenas de meia hora. E não precisámos de fazer o check-in, porque os funcionários da agência já o tinham feito por nós. Mas duvido muito que isto fosse possível se soubessem que iam elementos de grupos de apoio organizados no avião, no caso de um charter para ver o Benfica, por exemplo. Um pormenor curioso: até no aeroporto alemão, aquando do embarque, estavam dois Pereiras... Eram 4h da manhã quando começo a ver as luzes de Lisboa, lá em baixo. O Parque das Nações, toda a marginal até Alcântara, o Panteão Nacional, o castelo de São Jorge... E lembro-me que no projecto inicial do novo Estádio da Luz, estava previsto que os arcos vermelhos fossem iluminados à noite. Esta é a cidade que, por muito ou pouco tempo que me ausente dela, hei-de ter sempre saudades.