2005/12/22

A sessenta e três dias do Inferno
Santiago Bernabéu. Vicente Calderón. Ruíz de Lopera. Sánchez Pizjuán. Camp Nou. El Madrigal. Mestalla. Delmas. Parc des Princes. San Siro. Vanden Stock. Amsterdam Arena. Stadium Feijenoord. Old Trafford. Estes foram alguns dos estádios europeus onde já estive. Nuns vi o Benfica jogar, noutros estive lá como adepto de futebol meramente curioso em conhecer a casa de grandes clubes por essa Europa fora.

Próxima paragem? Anfield Road.

Quis o sorteio da Liga dos Campeões que o Benfica fosse jogar a mais outro estádio mítico. Mas este tem, ou tinha melhor dizendo, uma particularidade. Nos anos 70, na época de ouro do Liverpool, atrás de uma das balizas nascia um ambiente pouco comum com o que era usual ver pelos estádios ingleses. Se havia bancada inglesa mais parecida com a cena ultra, ela era seguramente a do Kop. Bandeiras maioritariamente encarnadas e brancas, de todos os tamanhos e feitios, cânticos a rodos onde se destaca o inevitável You'll Never Walk Alone acompanhados de milhares de cachecóis estendidos que davam um colorido ímpar aquele ambiente já de si frenético. Onde, também, não era raro ver tochas. Era esta a imagem de marca da bancada mais famosa de Inglaterra. Mas ao mesmo tempo que tinha uma imagem próxima do ambiente ultra, era também uma bancada tipicamente britânica, pela simbologia usada nos panos individuais que inundavam qualquer espaço livre do sector. Ainda há duas semanas atrás, Alex Ferguson repondeu a uma pergunta sobre o que esperava do ambiente no estádio da Luz quando jogou contra o Benfica, dizendo que os seus jogadores estavam habituados a grandes ambientes, como o de Anfield Road. E isto é uma prova do quão respeitado é esse estádio comandado pelos supporters do Kop.

Muito há a dizer sobre este sector quase centenário dos liverdpulians. Muitas histórias há que têm quase uma centena de anos. Anfield Road existe desde 1884 e em 1906 foi dado o nome de Spion Kop a uma das bancadas atrás de uma das balizas, em homenagem aos soldados ingleses que morreram na guerra que o império britânico travava na África do Sul. Algumas remodelações foram feitas neste sector que chegou a levar cerca de trinta mil pessoas em pé. E esta era uma particularidade tão característica do Kop: os adeptos viam o jogo todo em pé, não havia cadeiras nesta parte do estádio. Largas dezenas de anos mais tarde, em 1989, a tragédia de Hillsborough - ainda me lembro de ver as impiedosas imagens na televisão quando morreram 96 adeptos esmagados que têm um memorial em sua honra no estádio do Liverpool - era um prenúncio do que viria a acontecer em 1994. Todo o Kop foi remodelado e, por questões de segurança, todos os lugares passaram a ser sentados. A sua capacidade foi, por isso, reduzida. Mas o que mais custou aos adeptos foi toda aquela bancada ter sido destruída e terem acabado com o peão do Kop, uma das particularidades que o tornavam verdadeiramente singular. Há uma imagem que os seus adeptos nunca mais esquecem: o último jogo do Kop foi em Maio de 1994 e, no final, ninguém quis saír da bancada. A polícia, ciente deste momento e da importância e significado que tinha para os supporters, deixou-os ficar no Kop a cantar com o resto do estádio já vazio. Assim como cresci na velha Luz e tantas vezes vivi o Inferno do terceiro anel, também aprendi a ver Anfield Road como um dos estádios mais temíveis de Inglaterra, pelo ambiente que se criava à sua volta. E percebo, melhor do que qualquer liverdpulian pode imaginar, o quão difícil foi a despedida do Kop, tal como ele era. É que eu não fui capaz de ir ao jogo de despedida do antigo estádio da Luz. E hoje, quando vejo imagens do Kop actual ou oiço o YNWA, tenho a impressão que ele não se perdeu totalmente. A alma está lá toda. O sentimento é que se desvaneceu um pouco. E é só isso que quero ver, com a certeza que a Luz também vai provocar arrepios na espinha aos ingleses que cá vierem e comentários como eu já li num fórum dos liverdpulians:

The new Estadio Da Luz is superb. There's the additional factor of 65000 screaming eagles in the Luz to take into account. It's how I'd want our new Anfield to be built.

Benfica are a great side, with fanatical support, playing in a country of passionate people... it's a potent combination. Great, great team who deserves to be back in the top rank.

I was impressed with the Estadio da Luz last year for the England - Croatia game.

Benfica supporters created a very intimidating atmosphere against the mancs and it was one of the reasons they pass on.

Duas grandes equipas que, em idos tempos já dominaram a Europa e dois estádios míticos que figuram no imaginário dos seus adeptos. Duas 'viagens' que, espero, irão marcar a memória de quem tiver o privilégio de embarcar nelas. Um Kop à nossa espera. E um Inferno mortinho por os trucidar...

2005/12/12

Um regresso ao passado
Ainda tenho o barulho ensurdecedor daquele estádio a ecoar-me na cabeça. Fosse para puxar pela equipa, fosse para enervar o adversário. Ainda me emociono quando me apercebi, pela primeira vez nessa noite, que a Luz não era apenas um estádio mas sim um estado de alma. Ainda me emociono quando recordo os sessenta e cinco mil índios que pouco mais eram do que metade dos cento e vinte mil que me habituaram a estes ambientes e a estas noites mas que fizeram renascer esse inferno, esse estado de alma. Porque um estádio assim não pode ser um estádio qualquer e muito menos se pode resumir a quatro bancadas marcadas pela publicidade. É algo mais que isto. É sentir na pele que passámos para o relvado a nossa vontade, o nosso sonho, o nosso desejo, o nosso querer, a nossa ilusão. É esquecer, por momentos, que quando alto se sonha a desilusão pode vir em forma de hecatombe. E corremos esse risco, porque acreditámos sempre que maior do que a ilusão seria o concretizar deste sonho. Mas fizemo-lo com a convicção que marca a diferença, empunhando bem alto o orgulho que nunca fugiu mas que às vezes se esconde por qualquer razão. Mas principalmente, fizémo-lo com a consciência das nossas fraquezas que as transformámos em forças. Com a histórica sina que sempre tivémos de correr mais para ultrapassar as nossas barreiras e superar os obstáculos. Esta era, aliás, uma das grandes características do Benfica que passeou pela Europa em idos tempos, que ainda hoje é falado e ao qual devemos muito do respeito que nos prestam em todo o mundo. O Benfica não era apenas onze jogadores. Era também o estádio da Luz. E era esta união entre a fé e a crença nas camisolas berrantes que o Inferno impunha respeito e temor nos adversários. Nada que eu não tivesse já sentido. Mas não neste estádio. E muito menos com este estado de alma.

Quando chego às redondezas do estádio, aparecem-me à frente dois ingleses:
- Where is Estadio da Luz?, perguntam-me.
Fico sem saber se são doidos ou se estão a falar sério, pois o clarão dos holofotes via-se daquela rua.
- All street ahead and you´ll see where is, respondo-lhes.
- Can we go with you?, ripostou um dos United fans, talvez não convencido com a sinceridade da minha resposta, apesar do clarão do estádio.
Acedi ao pedido e, por alguns minutos, fiquei a saber coisas interessantes durante a conversa que mantive com eles. Que a Luz, apesar da sua versão nova, continua a ser um dos recintos mais conhecidos em Inglaterra. Que não estavam nada confiantes em relação ao jogo do Man Utd. Que ficaram sentidos quando lamentei a morte do Best, e ali percebi que este jogador lhes dizia mesmo muito. E que, imagine-se, não tinham bilhetes para o jogo e vieram a Lisboa mais numa de fugir ao frio e curtir o ambiente. Definitivamente, eram doidos.
- Welcome to hell, despedi-me quando avistámos o estádio. E mal sabia eu o quão acertadas viriam a ser estas palavras.
Os últimos dez minutos do jogo, foram intemporais. Parecia que o tempo não andava. Olhei mais vezes para o relógio do que num ano de vida. Deslumbrava-me com aquele ambiente e com a garra que os jogadores mostraram em campo. Estava mais nervoso que nunca. E ansioso também. Não queria deixar de sentir este estado de alma à minha volta. E ao mesmo tempo queria que o jogo acabasse. Senti-me empurrado para as míticas quartas-feiras europeias à custa de um Benfica que fez das fraquezas, as suas forças. E ao ver aqueles sessenta e cinco mil explodirem com a paixão exacerbada, revivi o Inferno. E, não me contive, chorei. Passaram cinco dias de uma noite que me mandou literalmente de volta às quartas-feiras europeias do antigo estádio da Luz. Agora, tenho setenta e um dias para sonhar com outra noite como esta.