O dia em que o futebol se perdeu
Estavamos na época 92/93. O, na altura, ainda derby da capital ia ser jogado num domingo de temperatura amena, à noite, em pleno estádio da Luz com transmissão televisiva. Para ajudar a relembrar, foi no ano em que Futre vestiu a camisola do Benfica. Nessa noite, fui para o mítico 3º anel com um amigo de infância, responsável por me ter levado para os DV1982. Neste momento, não me recordo muito bem desse campeonato a não ser de três pequenos apontamentos: do jogo de apresentação do Futre, que calhou ter sido contra os tripeiros para a Taça de Portugal, num dia de semana à tarde que, mesmo assim, não impediu de estarem 80 mil pessoas presentes!; da final do Jamor contra o Boavista em que ganhámos por 5-2 com um dos melhores jogos de futebol a que assisti do meu Benfica e com uma curva verdadeiramente infernal dos grupos benfiquistas; e dum episódio que vou contar nas próximas linhas.
Quando estava a começar este texto, tive o cuidado de escrever o 'ainda derby da capital'. Fi-lo propositadamente com o intuito de realçar a circunstância que aqui se conta de seguida, como ponto de viragem do futebol como eu o via e como hoje o vejo. Se fosse hoje, penso que mais facilmente escreveria o 'derby capital', tal a subjugação às leis mercantis e industriais de um futebol que, de comum com o de há uns anos atrás, só tem mesmo uma bola e onze contra onze de cada lado. Mas vamos então à história. Entrei pela saudosa rampa 3 com esse meu amigo. Logo à entrada, deparámo-nos com um grupo de polícias encarregues de fazer a revista aos adeptos. Recordo que este procedimento era muito recente na altura, mas neste jogo atingiu níveis que até então jamais tinha visto. Fomos literalmente revistados de alto a baixo. Desde os pés à cabeça. Tirámos os blusões e os cachecóis do corpo. E lá passámos sem, naturalmente, acusar nenhum objecto contundente. Digo naturalmente porque, nessa altura, nem tochas nem potes de fumo eram proibídos de entrar nos estádios: essa restrição veio depois de 94. Não é que nós tivessemos esse material. Mas porque se tivessemos, mesmo que a revista descobrisse, teriam passado à mesma. Aliás, nem era preciso escondê-los, por isso ainda hoje tenho alguma dificuldade em perceber o porquê da revista tão minuciosa, tendo em conta que hoje elas são principalmente feitas para impedir que esse tipo de material entre no estádio. Até as bandeiras de suporte em ferro e madeira podiam entrar.
Para mim, este foi o momento de viragem para um futebol moderno com que todos nós, directa ou indirectamente, bem ou mal, acabamos por pactuar. Foi também o ter sentido na pele, embora não se tenha passado comigo, a prepotência e abuso de autoridade da polícia num estádio de futebol. O meu amigo, ficou um bocado chateado com todo o aparato da revista a que foi sujeito e, quando passámos o portão de entrada, comentou para mim em tom de desabafo: ''só lhes faltou revistarem-me os tomates'. Repito, já tinhamos passado o portão de acesso às escadas que nos levariam ao 3º anel. O seu azar acabou por ser o divertimento do polícia que, mesmo a uns bons metros de nós, ouviu o comentário. Não sei se estão a imaginar o que aconteceu a seguir. Esse polícia acercou-se do meu amigo e num gesto autoritário agarrou-o pelos ditos cujos. Fiquei atónito, não só pelo acto bestialmente anormal - por vir de quem vinha - mas pela sensação que um gajo que os tem sente ao ver uma cena destas. A partir desse dia, interiorizei mesmo que eles podiam fazer o que quisessem. Percebi, também, e se calhar mais importante, que a nossa liberdade enquanto adeptos - para não falar de cidadãos - estava condicionada. Um mero comentário em forma de desabafo levou a uma atitude injustificada de quem mais parecia que tinha sido agredido.
Palavra de honra que este jogo foi um ponto de viragem. Foi aquele que, para quem vai à bola frequentemente desde os meus 8 anos, marcou a passagem para um futebol cada vez mais elitista. Tudo o que dantes víamos como ícones do futebol, deixaram de existir ao nosso lado na bancada. Sejam bandeiras que o povo orgulhosamente ostentava na entrada dos jogadores em campo e nos golos marcados. Sejam potes e tochas que os mais novos e intervencionistas abriam no início do jogo - que levavam a um ritual quase obrigatório de tapar a cara com o cachecol por causa dos fumos. Sejam os jogos à tarde, em que sentíamos o calor ou o frio do betão das bancadas. Sejam as sandes e sumos que levávamos para dentro do estádio para que não gastássemos o resto dos tostões da semanada nos bares escondidos por baixo das bancadas e vendedores ambulantes. Sejam as faixas que identificavam os adeptos mais rebeldes penduradas nas redes de separação do relvado a tapar a publicidade. Sejam os ricos lado a lado com os pobres, juntos pelo mesmo ideal de nome Sport Lisboa e Benfica.
Actualmente, apesar de nem tudo ser mau e de haver outras condições, perdeu-se toda ou quase toda a magia do futebol enquanto jogo e ópio do povo. Uns tiveram o privilégio de passar por esses momentos. Outros não sabem o que perderam. Faço parte dos primeiros, por ter ainda apanhado o futebol da bola. Mas assola-me constantemente essa nostalgia. Nostalgia da carolice que nos movia pelo Benfica, das quartas-feiras europeias, das cento e vinte mil pessoas, dos 15 minutos à Benfica, do Inferno da Luz, das invasões de campo quando eramos campeões... Hoje posso comparar duas realidades distintas e sinto, claramente, que gostava muito mais desses tempos tão diferentes. Infelizmente não conseguimos defender esses valores e interesses de modo a que os de hoje, tantas vezes antagónicos, não se superiorizassem. Um 'apenas' que é quase tudo!
Estavamos na época 92/93. O, na altura, ainda derby da capital ia ser jogado num domingo de temperatura amena, à noite, em pleno estádio da Luz com transmissão televisiva. Para ajudar a relembrar, foi no ano em que Futre vestiu a camisola do Benfica. Nessa noite, fui para o mítico 3º anel com um amigo de infância, responsável por me ter levado para os DV1982. Neste momento, não me recordo muito bem desse campeonato a não ser de três pequenos apontamentos: do jogo de apresentação do Futre, que calhou ter sido contra os tripeiros para a Taça de Portugal, num dia de semana à tarde que, mesmo assim, não impediu de estarem 80 mil pessoas presentes!; da final do Jamor contra o Boavista em que ganhámos por 5-2 com um dos melhores jogos de futebol a que assisti do meu Benfica e com uma curva verdadeiramente infernal dos grupos benfiquistas; e dum episódio que vou contar nas próximas linhas.
Quando estava a começar este texto, tive o cuidado de escrever o 'ainda derby da capital'. Fi-lo propositadamente com o intuito de realçar a circunstância que aqui se conta de seguida, como ponto de viragem do futebol como eu o via e como hoje o vejo. Se fosse hoje, penso que mais facilmente escreveria o 'derby capital', tal a subjugação às leis mercantis e industriais de um futebol que, de comum com o de há uns anos atrás, só tem mesmo uma bola e onze contra onze de cada lado. Mas vamos então à história. Entrei pela saudosa rampa 3 com esse meu amigo. Logo à entrada, deparámo-nos com um grupo de polícias encarregues de fazer a revista aos adeptos. Recordo que este procedimento era muito recente na altura, mas neste jogo atingiu níveis que até então jamais tinha visto. Fomos literalmente revistados de alto a baixo. Desde os pés à cabeça. Tirámos os blusões e os cachecóis do corpo. E lá passámos sem, naturalmente, acusar nenhum objecto contundente. Digo naturalmente porque, nessa altura, nem tochas nem potes de fumo eram proibídos de entrar nos estádios: essa restrição veio depois de 94. Não é que nós tivessemos esse material. Mas porque se tivessemos, mesmo que a revista descobrisse, teriam passado à mesma. Aliás, nem era preciso escondê-los, por isso ainda hoje tenho alguma dificuldade em perceber o porquê da revista tão minuciosa, tendo em conta que hoje elas são principalmente feitas para impedir que esse tipo de material entre no estádio. Até as bandeiras de suporte em ferro e madeira podiam entrar.
Para mim, este foi o momento de viragem para um futebol moderno com que todos nós, directa ou indirectamente, bem ou mal, acabamos por pactuar. Foi também o ter sentido na pele, embora não se tenha passado comigo, a prepotência e abuso de autoridade da polícia num estádio de futebol. O meu amigo, ficou um bocado chateado com todo o aparato da revista a que foi sujeito e, quando passámos o portão de entrada, comentou para mim em tom de desabafo: ''só lhes faltou revistarem-me os tomates'. Repito, já tinhamos passado o portão de acesso às escadas que nos levariam ao 3º anel. O seu azar acabou por ser o divertimento do polícia que, mesmo a uns bons metros de nós, ouviu o comentário. Não sei se estão a imaginar o que aconteceu a seguir. Esse polícia acercou-se do meu amigo e num gesto autoritário agarrou-o pelos ditos cujos. Fiquei atónito, não só pelo acto bestialmente anormal - por vir de quem vinha - mas pela sensação que um gajo que os tem sente ao ver uma cena destas. A partir desse dia, interiorizei mesmo que eles podiam fazer o que quisessem. Percebi, também, e se calhar mais importante, que a nossa liberdade enquanto adeptos - para não falar de cidadãos - estava condicionada. Um mero comentário em forma de desabafo levou a uma atitude injustificada de quem mais parecia que tinha sido agredido.
Palavra de honra que este jogo foi um ponto de viragem. Foi aquele que, para quem vai à bola frequentemente desde os meus 8 anos, marcou a passagem para um futebol cada vez mais elitista. Tudo o que dantes víamos como ícones do futebol, deixaram de existir ao nosso lado na bancada. Sejam bandeiras que o povo orgulhosamente ostentava na entrada dos jogadores em campo e nos golos marcados. Sejam potes e tochas que os mais novos e intervencionistas abriam no início do jogo - que levavam a um ritual quase obrigatório de tapar a cara com o cachecol por causa dos fumos. Sejam os jogos à tarde, em que sentíamos o calor ou o frio do betão das bancadas. Sejam as sandes e sumos que levávamos para dentro do estádio para que não gastássemos o resto dos tostões da semanada nos bares escondidos por baixo das bancadas e vendedores ambulantes. Sejam as faixas que identificavam os adeptos mais rebeldes penduradas nas redes de separação do relvado a tapar a publicidade. Sejam os ricos lado a lado com os pobres, juntos pelo mesmo ideal de nome Sport Lisboa e Benfica.
Actualmente, apesar de nem tudo ser mau e de haver outras condições, perdeu-se toda ou quase toda a magia do futebol enquanto jogo e ópio do povo. Uns tiveram o privilégio de passar por esses momentos. Outros não sabem o que perderam. Faço parte dos primeiros, por ter ainda apanhado o futebol da bola. Mas assola-me constantemente essa nostalgia. Nostalgia da carolice que nos movia pelo Benfica, das quartas-feiras europeias, das cento e vinte mil pessoas, dos 15 minutos à Benfica, do Inferno da Luz, das invasões de campo quando eramos campeões... Hoje posso comparar duas realidades distintas e sinto, claramente, que gostava muito mais desses tempos tão diferentes. Infelizmente não conseguimos defender esses valores e interesses de modo a que os de hoje, tantas vezes antagónicos, não se superiorizassem. Um 'apenas' que é quase tudo!
2 Comments:
Excelente texto. Muitíssimos parabéns, amigo.
Tocaste em tudo: desde a liberdade que nos teimam em tirar - seja como cidadãos, seja como adeptos - aos símbolos a que nos queremos agarrar (porque o futebol é isso: símbolos religiosos e cores que seguimos como crentes) e que o sistema quer apagar para subsituir por outros mais convenientes e coniventes, como a coca-cola.
Texto brilhante, repito.
Ultra abraço!
"Bora lá!" - ;)
Isso é tudo verdade e concordo na íntegra mas, e perdoem-me a sinceridade, não é também por alguma culpa nossa que estamos onde estamos?
Criticamos os horários e preços dos jogos mas temos adeptos que, quando conseguem conjugar "uns trocos" com horários minimamente decentes conseguem o brilhante feito de assobiar metade do jogo e criticar outra tanta :s
Queixamo-nos por não entrarem tochas e fumos, mas esquecemo-nos do principal objectivo: apoiar! Eu não troco uma tocha ou um fumo por 10 minutos de apoio, o tipo de apoio que o Benfica merece! Ou já nos proibiram de cantar também?!
E podia continuar com os exemplos, mas acho que chegam para entender o que quero dizer. Custa-me olhar para trás e ver uma realidade que talvez nunca volte, mas custa-me mais notar que não aproveitamos o que ainda temos por comodismo, falta de vontade, mentalidade ou afins!
Desculpa o desabafo!
Beijo, I.
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