O que foi não volta a ser
Este post é dedicado aqueles que cresceram e aprenderam a ir à bola nos anos 80 e princípios dos 90. Mas, também, aos que não tiveram esse privilégio.
Este post é dedicado aqueles que cresceram e aprenderam a ir à bola nos anos 80 e princípios dos 90. Mas, também, aos que não tiveram esse privilégio.
Os estádios não tinham cadeiras, o betão e o cimento sobressaiam nas bancadas e só uma pequena parte era coberta, quando o era.
Íamos soltos e à vontade para o estádio, ninguém nos controlava e andávamos pelas bancadas a fazer a nossa farra. E isso não era perigoso.
Havia muito menos sectores que dividiam o estádio, com grades ou simples redes a separá-los, e podíamos escolher livremente para onde queríamos ir porque o preço do bilhete era único para sócios e não sócios.
Não havia entraves de segurança na entrada do estádio, torniquetes, câmaras de videovigilância ou stewards privados.
Enchíamos a garrafa com água da torneira, levávamos o sumol e a coca-cola em lata e ninguém nos impedia de entrar na bancada. Agora estão lá em forma de publicidade.
Andávamos com tochas e potes de fumo na mochila, para lá e para cá, sem ninguém nos apontar o dedo. Tínhamos bandeiras, bandeirões e a nossa identificação em forma de faixa que punhamos livremente na bancada e nos muros mesmo que tivessem painés publicitários. Alguns anos depois, tornou-se incómodo.
Construíamos em poucos segundos os tifos mais emblemáticos que pode haver à base daqueles fumos e tochas que muitas vezes eram mandadas para o relvado e coloriam a bancada. E nunca ninguém se incomodou. Volvidos uns anos, pensaram que era perigoso.
Íamos brincar na rua do bairro, antes de irmos para a bola. E brincávamos à volta do estádio com uma única condição: voltar para casa ao anoitecer. Não havia telemóveis e, mesmo assim, os nossos pais sabiam onde estávamos.
Tínhamos aulas só de manhã, íamos almoçar a casa e logo a seguir partíamos para o estádio, nas quartas-feiras europeias.
Gessos, dentes partidos, joelhos rachados, pés torcidos... Fosse pelo que fosse, ninguém se queixava disso. E, tal como agora, todos tinham razão menos nós. Só que dantes éramos genuinamente genuínos.
Comíamos tudo à vontade, dentro do estádio. Pão com manteiga e fiambre, bolos de arroz e bolas de berlim. Não se falava em bares concessionados nem em espaços interiores comerciais debaixo das bancadas. Não nos impunham nada.
Dividíamos com os nossos amigos um sumol e uma coca-cola trazida de casa, comprada na tasca da esquina ou nas rulotes da praxe. Estávamos por nossa conta.
A pé, de bicicleta ou de autocarro e metro íamos a casa dos nossos amigos, mesmo que morassem a quilómetros da nossa, e entrávamos sem bater para irmos à bola. Chegávamos ao estádio e havia tempo para jogar futebol na rua, com a baliza sinalizada por duas pedras e mesmo assim não nos queixávamos.
E os nossos heróis, lembram-se? Nada de traições porque o dinheiro não falava mais alto. O que contava era o amor à camisola. Era honrar o símbolo que vestiam em campo e fora dele. Corriam por nós, porque eles também eram um dos nossos. E, por isso, confundiam-se com as camisolas.
Na bancada do estádio estávamos todos unidos pelo mesmo ideal e pelo mesmo interesse. Uns cantavam, outros assobiavam. E ninguém os mandava calar, sentar ou baixar a bandeira. Não havia sede de protagonismo nem a moda dos ultras, casuals ou hooligans ou o que quer que fosse. Éramos todos índios da mesma massa.
Não se falava em repressão, problemas de segurança, escoltas e unidades de controlo policiais, stewards e muito menos de Pereiras. Não imaginávamos sequer que um dia fossemos sujeitos a leis hipócritas e denunciadoras de um certo autoritarismo oficial. Quem se portava mal, fugia pelas bancadas e escondia-se lá pelo meio. E perdia o melhor, porque não via o jogo com os seus. A isto chama-se carolice.
Tínhamos liberdade e direitos. E aprendíamos, por nós próprios, a lidar com os fracassos, sucessos e deveres. Desenvolvíamos a nossa identidade e personalidade com valores agora esquecidos. E nunca veio mal ao mundo por isso.
1 Comments:
Oh tempo volta para trás...
Ainda vivi os ultimos anos deste verdadeiro movimento(sim verdadeiro), e ainda que fosse novo e não fosse tantas vezes á bola há memórias que me vão ficar eternamente gravadas na memória.
E dizes tu muito bem, á uns quantos anos ninguem imaginava sequer que as coisas tomassem este rumo e o futebol já estivesse tão estragado como hoje está.
Os tempos mudaram tudo, o futebol, o movimento, as pessoas, só uma coisa é que não muda, o amor que nós criámos por tudo isto nos bons anos em que o movimento e o futebol ainda eram verdadeiros, em que ir ao futebol com os amigos era uma aventura divertida, hoje em dia... bem hoje em dia já toda a gente sabe como as coisas são...
Triste sina a nossa que teve de ver o futebol a morrer sem nada poder fazer.
Abraço do outro lado.
P.S: Acabo como comecei,
Oh tempo volta para trás...
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