2006/02/10

Desobediências de um mundo à parte
Uma das grandes características da cultura ultra reside na tradição de desobediência que muitas vezes é confundida com marginalidade e até criminalidade por quem não se preocupa em passar uma mensagem séria e livre de preconceitos para com os grupos ultras.

Todos sabemos com que linhas se cose a sociedade actual. Todos sabemos, também, que qualquer sub-grupo duma sociedade é fruto das interacções entre os vários indivíduos que o compõem. Um grupo tem de ter, necessariamente, uma ligação comum a algo ou a alguém e, no caso das claques, esse algo é um clube. Até aqui se pode enquadrar o próprio adepto comum que está presente pela mesma razão. Apesar de tudo, é curioso como são mais as diferenças que os afastam do que as semelhanças que os aproximam. Daí os ideais que norteiam uns e outros serem completamente distintos. As diferenças estre os adeptos normais e os mais fanáticos que se juntam nos grupos de apoio começam na maneira como vivem o jogo e acabam na forma como o levam para casa, mesmo depois de ter acabado, já a pensar no próximo.

O fundamentalismo nunca foi bom conselheiro, no entanto julgo que há casos em que quando existe, é a prova de uma paixão levada ao extremo. E desde que isso não signifique que venha mal ao mundo, o mesmo é dizer, que não prejudique terceiros, não vejo motivos para grande preocupação. Apoiar o clube da nossa vida, aquele por quem fazemos sacrifícios por tudo e por nada, por quem nos chateamos por muito e por pouco, por quem gastamos rios de dinheiro às vezes sem comer nem dormir, por quem adiamos projectos pessoais e profissionais, por quem esquecemos amizades e ganhamos outras é algo que requer uma compreensão tolerante pela maioria das pessoas. Tanto mais quanto mais óbvio é a ideia que estes fanáticos são vistos como abusadores e a quem lhes é apontado o dedo à mínima falha de comportamento. É muito fácil generalizar atitudes num grupo tão vasto. Mas também é muito injusto catalogar todos pelos actos de alguns.

Estes fanáticos lutam. Não só pelo seu clube mas também por um ideal perseguido. Lutam pelo futebol livre de interesses. Daí a desobediência às regras impostas. Gostam de ir à bola, beber umas cervejas e conversar sobre as mais variadas histórias que viveram à conta de deslocações e não só. Estes fanáticos sofrem. Não só pelo seu clube mas também por se sentirem ameaçados na sua liberdade. Daí a desobediência à repressão. Gostam de estar em pé, a cantar e desfraldar as bandeiras e estandartes que ainda lhes são permitidos entrar no estádio. Estes fanáticos até têm consciência. Alertam para certos estados em estádios onde o bilhete para entrar nos faz pensar que estamos no olimpo da riqueza. Daí a desobediência ao futebol moderno. Gostam de se lembrar de antigamente, aqueles que tiveram o privilégio de estar presente nesse tempo, e de relembrar aos mais novos que o futebol já foi do povo. Mas não raras vezes há qualquer coisa que deita quase tudo a perder. Uma atitude irreflectida, um gesto mal pensado. E mais uma história que fica para contar, normalmente, com um fim que em nada ajuda à imagem dos grupos. Esta é a desobediência desnecessária, a que não interessa trazer para este mundo, a que despoja de sentido o esforço e a luta encetada, se bem que às vezes seja inevitável mas, para mim, apenas em caso de defesa. Porque ao fim e ao cabo, continuam no seu mundo, rodeados de premissas que, por vezes, mais não são do que quatro paredes à volta.
Mas a verdade, aquela que não vale mesmo a pena esconder, é que os grupos de apoio não fogem de certas situações mais violentas, provocando-as muitas vezes. É preciso assumi-lo que isto sempre foi assim. Mas o que não se pode também esconder, são as consecutivas manobras dos media e opinion makers sem qualquer formação para culpabilizar os grupos de apoio pelo estado do futebol actual, passando uma mensagem para a opinião pública que não deixa de ter uma certa verdade, mas que esconde muitas outras por trás. Esta é, aliás, uma poderosa forma de distorcer a realidade. O único motivo em que podem ter razão neste contexto é que os próprios grupos também se industrializaram. Mas numa indústria que prima pela mercantilização de uma paixão que orgulhosamente nunca deixaram de ter, esta foi a maneira que encontraram para sobreviver. Só que eu nunca os ouvi falar disso, assim como nunca os ouvi falar da perda dos valores a que o futebol negócio chegou. Porquê? Porque muito provavelmente não vão ao estádio, de certeza que não fazem sacrifícios de toda a ordem para ir ver o seu clube jogar fora, não sabem o que é deixar de escolher uma coisa para poderem ter outra e muito menos sabem o que é sentir centenas de adeptos num estádio estrangeiro a gritar pelo seu clube a milhares de quilómetros de casa. E mesmo no dia em que tiverem esse privilégio, duvido que percebam o que eu escrevo nestas linhas. É que não me posso esquecer que o nosso ideal vai contra as regras instituídas, um ideal politicamente incorrecto, em que somos irreconhecidamente fiéis e reconhecidamente um alvo a abater. Um mundo à parte.

8 Comments:

Blogger Manuel Neves said...

Óptimo post.
O problema da violência é o tal desequílibrio entre: "Não andamos cá pela violência" mas "Não nos cortamos quando os vemos." O que quer dizer que há uma "cosa nostra" em que - supostamente - não se toca em adeptos rivais normais, mas em que se viola as regras de um estado de direito (propositadamente com minúscula).
E isto é dificil de gerir não só para os grupos como para a opinião pública. E a partir daí, falares em grupos que defendem "velhos valores" é quase comédia para a população em geral.
Temos que crescer. Parar de perder tempo com guerras e assumir que o futebol é nosso. E isso não implica imediatamente protestos organizados em conjunto. Implica é ganhar maturidade: apoiar sempre, fazer os restantes adeptos ganharem-nos respeito, mostrar-lhes que a luta pelo futebol do povo também é deles. E aí, quando o povo já souber o que significa ser "Ultra", já teremos provado que temos razão e deixaremos de ter que ser "marginais". Até lá, é cantar em todos os estádio, protestar e enfim, viver este mundo à parte (ou "aparte", tudo junto? Não faço ideia, o que me irrita.).
Um grande abraço

10:42 da tarde  
Blogger Miguel said...

ora boas
obrigado pelo comentario no meu blog espero uma historia de tua parte
abraços
miguel

6:57 da tarde  
Blogger Fireal said...

A verdade é que a maioria dos polícias são cobardes. Já nem falo do facto de andarem protegidos desde a cabeça aos pés, falo sim de saberem de antemão que têm uma espécie de imunidade por estarem a bater em adeptos de futebol.
Se um ladrão soubesse que não iria preso se roubasse qual era a primeira coisa que faria?

Não sou hipócrita ao ponto de dizer que sou um santinho. Contudo, fico absolutamente icrédulo quando vejo associações de adeptos que só servem para nos chular, entidades do estado que não fazem a minima ideia do que andam a fazer, e nós no meio disto tudo a levar com bastões (sim porque aquilo já não é um cacetete...) na cabeça.
ALGUM POLICIA É ENSINADO A VIRAR O CACETE AO CONTRÁRIO E APONTAR Á CABEÇA NA "ESCOLA DE CHIBARIA"??!!??

Os políticos em Portugal metem-me nojo...

Abraço

9:07 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Muito bem escrito.. excelentemente fundamentado.. parabéns uma vez mais! Abraço

7:20 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Pois lá está um problema das sociedades modernas.Não havendo estudantes para bater , não havendo vidreiros da marinha grande ( e que bem eles se bateram contra os cabardes policias)para bater, toca a dar porrada nos adeptos . Há que descarregar as frustaçopes do dia a dia...

10:07 da tarde  
Blogger Desnorteado said...

grande texto, como já é hábito!

que o presente nos abra os olhos do que vai ser o nosso futuro se nos deixarmos cair na rotina e nao intervirmos!

2:39 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Os chibos que se fodam.

Abraço

10:51 da tarde  
Blogger Fireal said...

é isso!

11:46 da tarde  

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