2005/06/23

Uma batalha ganha
Juro que agora não me lembro de que jogo se tratava, mas sei que era dos primeiros jogos europeus no novo estádio da Luz e nessa altura podia-se comprar os bilhetes nas estações de serviço da Galp. Foi o que fiz, meti-me à estrada e em pouquíssimos minutos cheguei ao destino para comprar dois bilhetes para o Benfica. Já me lembro do jogo: Benfica - Inter em Março de 2004 para a taça Uefa. Uma vez chegado, deparei-me com uma fila considerável. Ainda pensei que fosse para pagar o gasóleo, mas rapidamente percebi que estava na fila certa. Soltei um desabafo para os meus botões, mas logo me consolei porque só o Benfica é capaz de movimentar tanta gente aquelas horas da noite (já passava das 22 horas). Faltavam três dias para o jogo e, entre comentários de pessoas que desesperavam na fila, tentava não me esquecer para que sector do estádio tinha combinado comprar os dois bilhetes. Os lugares, tal como acontece nos cinemas, iam ao pormenor de serem marcados num estádio com 65 mil pessoas! Os bilhetes mais baratos eram relativamente acessíveis. Os mais caros eram indecentemente inacessíveis num desporto que me ensinou que na vida não devia haver discriminação social. O futebol é do povo e eu cresci a ver a bola lado a lado com ricos e pobres na mesma bancada. Passado meia hora depois de entrar na fila, estava quase a chegar a minha vez de pedir os bilhetes. Mas antes acabei por fazer parte de um filme que já não se vê por esses estádios fora, porque o futebol moderno se encarregou de afastar praticamente de vez um dos principais protagonistas do futebol: o povo e a gente que tem no futebol o refúgio para as suas mágoas e frustrações, desejos e anseios. Estava um senhor, de vestes modestas, com três cartões de sócio do Benfica numa mão e o dinheiro, presumo que contado até ao último cêntimo, na outra. Pediu três bilhetes dos mais baratos, um para ele - o pai - e os outros dois para os seus filhos menores. Do outro lado do balcão, surgiu a resposta mais indesejável que ele podia receber: "já estão esgotados". Ouvi o senhor lamentar o seu azar. Ouvi-o barafustar contra o preço dos bilhetes. Ouvi-o mandar vir contra o elitismo em que se estava a tornar o futebol. Mas o que ouvi com maior atenção é que queria levar pela primeira vez os seus dois filhos menores à Luz e assim não podia realizar uma promessa feita aos miúdos, porque o dinheiro que tinha não chegava para tudo. Vi um pai duma família modesta a sentir na pele as consequências do futebol indústria que tanto odeio e abomino. Foi isto que me fez revoltar e sentir que não podia deixar de fazer alguma coisa. Ele acabou por comprar apenas dois bilhetes, o que significava que um dos putos ia ficar de fora. Eu estava a seguir na fila e a primeira coisa que fiz foi pedir a esse senhor o cartão de sócio do filho que não ia poder ver o jogo. Foi instintivo, nem pensei dois segundos sequer e aposto que ele também não pensou para o que era. Ao balcão pedi um bilhete para o lugar imediatamente ao lado daqueles que ele tinha comprado, entreguei-lhe o cartão mais o bilhete a que tinha direito e disse-lhe qualquer coisa como "isto é para que o André não fique triste e possa ir consigo mais o irmão ver o Benfica". O senhor, naturalmente, agradeceu-me do alto da sua modéstia. Mas sinceramente não me interessava ouvir um 'obrigado' nem um agradecimento. Só me interessava que um puto não deixasse de ir ver a bola e o Benfica, que somos nós, por dificuldades financeiras. Só me interessava que um miúdo sentisse aquilo que eu senti quando entrei pela primeira vez na Luz. Só me interessava que o futebol moderno não vencesse naquele momento...

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Atitude nobre sim senhor, de certeza que pouca gente hoje em dia faria o mesmo gesto por alguem totalmente desconhecido.

Abraço do outro lado.

5:54 da tarde  

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